Direitos dos licitantes
Retenção ilegal de pagamento

A retenção de pagamentos consiste basicamente em descontar, dos pagamentos devidos ao contratado público, valores relacionados a algum débito deste perante o órgão contratante. Há hipóteses em que essa retenção é permitida expressamente e, afora essas, todas as demais são ilegais.

A retenção é prevista em lei unicamente nas seguintes hipóteses:[1]

  1. em caso de rescisão contratual, é possível implementa-la para fins de cobrança administrativa de uma indenização efetivamente devida pelo contratado;
  2. em caso de cobrança administrativa de multa, será possível reter pagamentos devidos após a conclusão de prévio processo administrativo com ampla defesa e contraditório;
  3. por último, em caso de haver controvérsia quanto à dimensão, à qualidade e à quantidade do objeto executado, é possível reter o valor controverso.

Nas hipóteses 1 e 2, o procedimento legal é o seguinte: (i) instaura-se processo administrativo para apurar o cabimento e a procedência de uma multa contratual ou de uma indenização; (ii) caso essa pretensão seja procedente, aplica-se a multa contratual ou se constitui o título indenizatório em favor do governo e; (iii) se houver pagamentos pendentes, a retenção do valor da multa ou da indenização desses valores devidos à contratada é uma das formas de viabilizar a cobrança.

A hipótese 3 veio prevista na Nova Lei de Licitações, que admite a retenção dos pagamentos devidos ao contratado exclusivamente quanto à parcela do objeto entregue, sobre a qual recaia controvérsia a respeito da dimensão, da qualidade e/ou da quantidade. Significa que o objeto contratado foi entregue, mas, porém, por ocasião de seu recebimento, o órgão verificou que sua dimensão, quantidade e/ou qualidade poderiam estar divergentes do contratado. Nesse caso, é autorizado o pagamento do valor incontroverso que está de acordo com o contrato, retendo-se, temporariamente, o valor controverso, até que se delibere definitivamente a respeito, ocasião em que poderá ser rejeitada a parte do objeto em desacordo.[2]

Vale registrar uma diferença de categoria entre as duas primeiras hipóteses e a terceira. Em 1 e 2 se está diante de situações em que a lei previu, quanto aos pagamentos que são efetivamente devidos – sobre os quais não há parcela controversa –, a retenção, para viabilizar a cobrança administrativa de débitos efetivamente devidos pelo contratado – apurados após os procedimentos prévios legalmente exigidos. Já na hipótese c, não se está propriamente diante de uma retenção, pois o pagamento ainda não seria, a rigor, devido, dada a controvérsia sobre a entrega do objeto em conformidade com o contrato. Muito provavelmente em função dessa diferença elementar, na hipótese 3 não se exige contraditório prévio, pois não haveria propriamente valores devidos, os quais estariam em processo de verificação. Não se trata, portanto, de situações equiparáveis.

Posta essa base, está claro que qualquer ato administrativo ou regulamentar – instruções normativas, portarias, decretos, etc. – que exceda ou contrarie os limites de qualquer uma dessas hipóteses legais acima comporta questionamento.

É o caso, por exemplo, da Portaria 71/2023, da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo/SP. Referida norma, sob pretexto de regulamentar o pagamento das parcelas incontroversas do objeto,[3] que é um direito óbvio, cristalino e incontestável dos contratantes públicos, permite a ilegal supressão do direito à ampla defesa e ao contraditório prévios à aplicação de multa contratual. E isso extrapola os limites do poder regulamentar,[4] na medida em que, como visto, a legislação não autoriza essa retenção.

De todo modo, a retenção ilegal de pagamento não é um tema novo.

Sobre ela os Tribunais há muito consolidaram entendimento de que fere a legalidade e implica enriquecimento ilícito do órgão, que se apropriaria ilegalmente de parte da remuneração reconhecidamente devida ao contratado pela entrega do objeto. Veja-se:

retenção do pagamento pelos serviços comprovadamente prestados caracterizaria enriquecimento ilícito e violação do princípio da legalidade”, “haja vista que tal providência não se encontra abarcada pelo artigo 87 da Lei 8.666/93” (g.n.)[5]

A doutrina especializada sobre o tema também é categórica em condenar a retenção de pagamento fora das hipóteses legalmente admitidas, tendo se atentado aos subterfúgios de linguagem geralmente adotados para minimizar a gravidade da medida, tais como, denominar a retenção ilegal como suspensão cautelar de pagamento – o mesmo se aplicaria à regulação do direito ao “pagamento incontroverso” adotado na regulamentação acima citada. Além disso, anotam que, nesses casos, seria como se a Administração Pública fizesse, à sua maneira, justiça com as próprias mãos, olvidando os procedimentos cabíveis para a aplicação das sanções.[6]

Sem dúvida, a retenção de pagamento é um dos maiores abusos que infelizmente ainda é praticado em contratos públicos, pois o recebimento do valor acordado é o direito mais elementar de quem contrata com o governo.

Como pontuamos em nosso guia básico, a gestão de um contrato público requer atenção especializada.

Nossa equipe está preparada para tratar deste e de outros temas. Em caso de dúvida, fale conosco pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone +55 31 988117191.

 

[1]Art. 80.  A rescisão de que trata o inciso I do artigo anterior acarreta as seguintes conseqüências, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei: (…) IV – retenção dos créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados à Administração. (…)

Art. 87.  Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (…) II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; (…) § 1o  Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente. § 2o As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis.” (g.n., Lei 8.666/93).

Art. 139. A extinção determinada por ato unilateral da Administração poderá acarretar, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei, as seguintes consequências:(…) IV – retenção dos créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados à Administração Pública e das multas aplicadas. (…)

Art. 143. No caso de controvérsia sobre a execução do objeto, quanto a dimensão, qualidade e quantidade, a parcela incontroversa deverá ser liberada no prazo previsto para pagamento. (…)

Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções: (…) II – multa; (…) § 8º Se a multa aplicada e as indenizações cabíveis forem superiores ao valor de pagamento eventualmente devido pela Administração ao contratado, além da perda desse valor, a diferença será descontada da garantia prestada ou será cobrada judicialmente. (…) Art. 157. Na aplicação da sanção prevista no inciso II do caput do art. 156 desta Lei, será facultada a defesa do interessado no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contado da data de sua intimação.” (g.n., Lei 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações).

[2] Vide todo o Capítulo IX da Nova Lei de Licitações, especialmente: “Art. 140. (…) § 1º O objeto do contrato poderá ser rejeitado, no todo ou em parte, quando estiver em desacordo com o contrato. (…) § 3º Os prazos e os métodos para a realização dos recebimentos provisório e definitivo serão definidos em regulamento ou no contrato.

[3]Institui a autorização de Pagamento de montante Incontestável referente a fornecimento de materiais, medicamentos e demais insumos.” (Preâmbulo).

[4] O poder regulamentar consiste na faculdade conferida ao executivo para expedir decretos e regulamentos para possibilitar a execução das leis (art. 84, incisos IV e VI, da Constituição Federal). O limite do poder regulamentar é a lei, não podendo criar restrições ou obrigações que nela não estejam previstas, conforme já foi rechaçado pelos Tribunais: “O Decreto estadual nº 47.210/2017, ao pretender regulamentar a referida lei, extrapolou indevidamente as exigências legais, configurando ilegalidade. 4. Recurso ordinário conhecido e provido.” (STJ, RMS n. 61.961/MG, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 9/3/2021, DJe de 19/3/2021.)

[5] STJ, AgInt no AREsp n. 1.161.478/MG, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 27/11/2018, DJe de 6/12/2018 c/c STJ, AgRg no AREsp 67.265/DF, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/08/2015, DJe 31/08/2015. Nesse sentido, vide também: REsp 1.742.457/CE, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 07/06/2019, e outros.

[6] Veja-se, nesse sentido, Raquel Carvalho (Autora e Procuradora do Estado de Minas Gerais. Retenção de pagamento: proibição de enriquecimento ilícito e de arbitrariedade governamental. Disponível neste link: https://raquelcarvalho.com.br/2021/02/23/retencao-de-pagamento-proibicao-de-enriquecimento-ilicito-e-de-arbitrariedade-governamental/.) e Benedicto Tolosa Filho (Sanções administrativas – Alcance, devido processo legal e dosimetria – Retenção indevida de pagamento. Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 224, p. 1005-1009, out. 2012.).

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