Decisões importantes
Improbidade, ampla defesa e gênero

O TJMG cassou uma sentença por falha de ampla defesa, aplicando o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ de 2021.

É a primeira decisão desse tipo no TJMG. Em linhas gerais, a sentença cassada indeferiu a produção de prova requerida pela servidora, por julgar haver apenas matéria de direito, tendo também desconsiderado atestado médico por falhas formais. Com isso, condenou uma servidora pública nas sanções de improbidade e ao ressarcimento de quase R$3.000,00, pelos dias que recebeu sem trabalhar.

A prova pedida pela servidora, e que foi negada na primeira instância, serviria para justificar algumas faltas ao trabalho, para cuidar do filho com bronquite. Quem nunca?

O TJMG cassou a sentença com base no Protocolo do CNJ, para oportunizar que a servidora comprove “o seu exercício de cuidado com o seu filho, que pode ser verdadeiro”.

A decisão fala por si e, por isso, vale ler o seguinte trecho:

“O que há nos autos, desde já, são elementos que demonstram que o filho da ré tem um delicado estado de saúde.

Considerando a experiência mais comum vivenciada pelas mulheres na nossa sociedade patriarcal, é crível imaginar que cabe à genitora os cuidados com o filho doente, sendo notório que, preferencialmente, as atividades de cuidado no âmbito familiar são rotineiramente assumidas por mulheres.

Essa falta de isonomia em relação aos cuidados com a casa e com os filhos, que ainda se verifica majoritariamente na nossa sociedade, é algo que deve ser considerado, inclusive para fins desse julgamento.

O Conselho Nacional de Justiça, em 2021, publicou um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, convocando os Magistrados a terem um olhar mais atento em relação à (des)igualdade de gênero. Mais precisamente sobre o princípio da igualdade, destaco relevantes trechos desse Protocolo:

‘Existem inúmeras concepções sobre a igualdade e sua relação com outros princípios. A igualdade de tratamento – qual seja, tratar iguais de maneira igual e desiguais de maneira desigual – é a visão mais tradicional67. Entretanto, ao longo do tempo, ela se mostrou ineficaz para lidar com a maior parte das desigualdades que acontecem no mundo real68. Isso porque, conforme apresentamos de maneira aprofundada na Parte I, Seção 2.a., se olharmos para a realidade concreta de certos grupos, vemos que a maior parte das desigualdades existentes não são fruto de diferenças de tratamento, mas, sim, de subordinação. Essa crítica feminista lança dúvidas se a igualdade jurídica atinge a emancipação das mulheres, uma vez que até agora isso significava assimilação aos homens. Relativiza os conceitos totalizantes de igualdade e diferença ao supor que em alguns campos as mulheres exigirão igualdade e em outros a validação de sua diferença. O problema, portanto, não está nas diferenças, mas em como elas foram assimiladas ao conceito de desigualdade, hierarquizadas, atribuindo maior valor ao homem, suas características, atributos e papéis’. (CNJ. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Publicado em 2021. f. 39)

‘A utilização do princípio da igualdade é, muitas vezes, associada a grandes demandas constitucionais. Em geral, em ações de controle concentrado, voltadas à declaração de inconstitucionalidade de normas. Sua utilização, entretanto, não se limita à declaração de inconstitucionalidade. É possível aplicar o princípio da igualdade também nas decisões do dia a dia, como ferramenta analítica e guia interpretativo para decisões atentas a gênero70. O princípio da igualdade substantiva pode nos servir de duas maneiras complementares em um julgamento: 1. Em primeiro lugar, como lente para olhar para problemas concretos. Quando confrontados com um problema, utilizar o princípio da igualdade substantiva significa buscar e tornar visíveis desigualdades estruturais que possam permear uma determinada controvérsia. Magistradas e magistrados preocupados com a igualdade podem sempre se perguntar: mesmo não havendo tratamento diferenciado por parte da lei, há aqui alguma desigualdade estrutural que possa ter um papel relevante no problema concreto? 2. Identificada a desigualdade estrutural, o princípio da igualdade substantiva deve servir como guia para a interpretação do direito. Ou seja, a resolução do problema deve ser voltada a desafiar e reduzir hierarquias sociais, buscando, assim, um resultado igualitário. Se o gênero, como visto anteriormente, é uma construção cultural, as desigualdades de gênero são um fato. E qualquer atuação jurisdicional que se pretenda efetiva no enfrentamento das desigualdades de gênero vai pressupor a compreensão de como atuam as formas de opressão, buscando a desconstrução do padrão normativo vigente (homem/branco/hetero/cristão). A magistratura brasileira, inserida nesse contexto de diferenças estruturais, caso pautada na crença de uma atuação jurisdicional com a aplicação neutra da lei e sem a compreensão da necessidade de reconceitualização do direito, servirá apenas como meio de manutenção das visões heteronormativas, racistas, sexistas e patriarcais dominantes, em descompasso com os preceitos constitucionais e convencionais da igualdade substancial.’ (CNJ. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Publicado em 2021. f. 40)

Sendo assim, atendendo à melhor técnica que a espécie exige, parece-me, no mínimo, razoável, autorizar a produção de provas pretendida pela ré, para que haja ao menos a oportunidade para que a parte comprove o seu exercício de cuidado com o seu filho, que pode ser verdadeiro, em que pese os vícios formais do atestado médico apresentado.

Estou aqui realçando que existe desigualdade cultural entre gêneros no que tange a criação e cuidados com os filhos, em que pese a obrigação de ambos os genitores. Ciente desse descompasso estrutural, é justo e adequado, no caso concreto, que a ré tenha oportunidade de comprovar que, também no seu caso particular, os cuidados com o seu filho são, na maioria das vezes, de sua responsabilidade e que, naquele período específico, foi necessário direcionar toda sua atenção ao seu filho doente.”

Segundo consta da decisão do Tribunal, como a Lei nº 14.230/2021 suprimiu a modalidade culposa, exigindo a comprovação do dolo específico, deve ser dada a oportunidade de comprovar a inexistência deste.

Lidando com  improbidade a tanto tempo, a novidade desse tipo de decisão traz uma espécie de arejamento jurídico-constitucional necessário frente à aridez do tema. Há estudos sobre a aplicação desse Protocolo do CNJ também em outros ramos.

Nossa equipe está preparada para tratar deste e de outros temas. Em caso de dúvida, fale conosco pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone +55 31 988117191.

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